Talvez alguns dos leitores se tenham perguntado: «Mani... o
quê? Não terá sido um engano de alguém que deseja falar de manicures ou de maquinistas?»
Na antiga filosofia escolástica, começava-se a lição
explicando os termos. É o que faremos também nós.
Filho da redução do pensamento e pai da intolerância, o
maniqueísmo tem por fundador Mani, um sincretista religioso que viveu no século
II da era cristã. Juntando elementos do cristianismo e de algumas religiões
orientais, defendeu uma visão dualista da história e da sociedade. De acordo
com sua doutrina, o mundo está dividido em duas forças antagônicas: o Bem e o
Mal, a Luz e as Trevas, Deus e o Diabo, num estado permanente de beligerância.
Saiba ou não saiba, queira ou não queira, cada ser humano, pelo simples fato de
nascer e viver, passa a integrar uma das duas frentes.
O maniqueísmo parece ter-se integrado tão profundamente na
alma da humanidade, que só se extinguirá... no final do mundo! A estruturação
dualista da sociedade é um dado inquestionável. A tentação de sempre é colocar
as pessoas, os acontecimentos e as doutrinas em margens opostas, num
antagonismo irreconciliável: direita/esquerda, opressor/oprimido, alma/corpo,
amigo/inimigo, capitalista/comunista, católico/evangélico, homem/mulher, povo/elite,
índio/fazendeiro, branco/negro, e assim por diante. O aspecto negativo de tudo
isso não são as diferenças – são elas que enriquecem a sociedade quando se
busca a comunhão, a justiça e o bem comum –, mas a tendência a olhar para os
outros como adversários que precisam ser eliminados, através da luta de
classes.
Quem leva o maniqueísmo às últimas consequências não são
apenas os regimes totalitários, construídos sobre a arrogância – ou a fraqueza?
– de quem não admite divergência. Ele está mais vivo do que nunca em toda a
parte, inclusive no seio da sociedade moderna, que passa por avançada e
tolerante. O que fez a Revolução Francesa, que disse ter nascido para libertar
a humanidade da escravidão e da tirania, senão massacrar a quem ousava divergir
de seus critérios e métodos? Até as religiões que contam em seu seio com uma
multidão de mártires, colaboraram – e algumas continuam colaborando – para a
eliminação dos “inimigos”...
Para o filósofo e político italiano, Augusto Del Noce, o
maniqueísmo contaminou a própria Igreja: «Para o pensamento católico de sempre,
o esquema que interpretava a história e seus acontecimentos passava pelos
antônimos fé/descrença, religião/ateísmo, devoção/impiedade, sagrado/profano.
Mas, ao aceitar as categorias da modernidade, a perspectiva de muitos homens da
Igreja também aceitou um novo esquema, sintetizado nas dicotomias:
progressista/conservador, direita/esquerda, reação/revolução. A interpretação
religiosa da história foi substituída pela interpretação política. Às categorias
tradicionais de verdadeiro/falso e bom/mau sucederam as de “progressista” (é o
novo “santo” da atualidade: ninguém segue o Evangelho se não for da esquerda!)
e “reacionário” (o pecador por excelência: quem é da direita é anticristão).
“Na nova escala de valores de certos eclesiásticos, o
verdadeiro antagonista com quem o cristão deve se confrontar não é mais o
antirreligioso, o blasfemador, o ateu. Eles são vistos como próceres de um
cristianismo anônimo e nobre, cujas acusações os cristãos devem acolher com
reverência contrita, fazendo de seus postulados um tesouro salutar. O
verdadeiro inimigo é o integrista, ou seja, o católico que toma a sério a
própria fé, que não se conforma em vê-la reduzida a um sentimento humanitário
ou a um valor comum, mas a transforma em diretriz e perspectiva de toda a sua
atividade”.
Para o maniqueísmo, os ímpios e os pecadores estão sempre na
margem oposta. O que se deve fazer é lutar e destruí-los – para que nós, os
bons, tomemos o seu lugar! Até o dia em que Deus deixa cair a casa e se
descobre que o bem e o mal estão presentes no coração de cada homem, como
experimentava São Paulo em sua própria carne: “Não faço o bem que quero, mas o
mal que não quero. Ora, se faço aquilo que não quero, não sou eu que o faço,
mas o pecado que habita em mim. Quem me libertará deste corpo de morte? A graça
de Deus, por meio de Jesus Cristo!” (Rm 7,19-20.24).
Dom Redovino Rizzardo, cs
Bispo de Dourados, MS
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